quarta-feira, 31 de outubro de 2007

De vazio, já basta o outro lugar da mesa

Terça-feira, seis e meia da tarde. Dia e horário ideal para um happy hour. Sentada à mesa do bar, esperava o garçom trazer o cardápio. Quando o garçom chegou, fez a pergunta indiscreta: “é só você?”. A garota, constrangida, respondeu: “sim, acredito que por enquanto seja só eu”.

Mal sabia o mero servente que o por enquanto era sinônimo de tempo indeterminado. Tempo determinado, na verdade, pelo garoto que dominava aquele coração. Ele era amor antigo, mas nem por isso menos arrebatador.

Arrebatava toda a sua energia, a sua sanidade mental. Arrebatou também seu senso de ridículo. Afinal, quem senta sozinha numa mesa de bar para esperar por alguém que não vai chegar?

Consciente do quanto parecia patética naquela mesa, ela olhou para o garçom, que àquela altura do campeonato havia se transformado no príncipe do cavalo branco. Ele serviu mais uma taça de vinho, ao que ela imediatamente falou: “não quer tomar comigo?”.

Constrangido, ele disse que não podia beber em serviço. Rejeitada até pelo garçom, ela lembrou de uma frase que havia ouvido de um grande amigo há algumas semanas. “Se você sorrir por 10 segundos, não há homem que não caia aos seus pés”, disse ele.

Acanhada, mexeu alguns músculos no canto da boca. Sim, aquela careta era o esboço de um sorriso. Se sentiu ridícula. Realmente estava sendo ridícula. Decidiu pedir a conta. Sorrir para todos e para ninguém é o que há de mais vazio. E de vazio, bastava o outro lugar da mesa.

domingo, 28 de outubro de 2007

Mudando de gênero

Eu admiro os homens. Admiro esse gênero da humanidade mais do que tudo. Não, na verdade não admiro. Vou mais longe: sinto inveja.

Invejo a capacidade que tem de ficar horas conversando com os amigos sem dizer nada de útil. Estão certo, nem tudo na vida tem que ter uma utilidade. (Caso contrário, como explicaríamos a existência de algumas pessoas nesse mundo?)

Invejo a habilidade com que fazem piadas a respeito dos assuntos mais sérios dessa vida. Um exemplar do gênero, ao conversar com os amigos sobre uma das brigas que teve com a esposa, resumiu tudo em uma pequena anedota. “Quando ela começou a dizer que não dava mais para continuarmos casados, olhei bem nos olhos dela e falei: ‘tudo bem’. Peguei as duas malas que estavam dentro do armário embutido, coloquei-as em cima da cama e a enchi de roupas. As roupas dela, lógico. Ela tava louca se achou que eu é que ia sair”, contou, em meio a intermináveis gargalhadas.

Invejo o jeito leve e simples com que encaram desde o problema mais rotineiro até o maior dilema de todos. Não são como as mulheres, que se prendem em pequenos detalhes inexistentes e se tornam incapazes de entender o raciocínio mais lógico e infalível de todos: ou é, ou não é.

Invejo também a maneira exata como suas vontades e desejos funcionam. Eles não misturam sexo com sentimento. (No que fazem muito bem, diga-se de passagem). Para esse gênero da espécie humana, amor é sentimento e sexo é prazer. E é dessa forma que arranjam seus relacionamentos. Não se desgastam pensando: “o que será que significa o sexo de ontem”. Segundo a lógica dos homens, sexo não tem significado. Sexo é sexo, ponto.

Mas acima de tudo invejo a maneira sincera com que se entregam à vida. Se querem beber, bebem. Se querem comer, comem. Se querem sexo, fazem sexo. Se querem namorar, namoram. E não ficam se enganando ou arranjando desculpas para as atitudes que tomaram. Se alguém fizer a mais infame das perguntas, têm a resposta na ponta da língua. Dizem: “porque eu quis”.

Daqui em diante, serei um homem. Um homem de voz fina, unhas pintadas, brincos de borboleta, anel de brilhante no dedo da mão direita e sapatinho de boneca vermelho. E sabe por quê? Porque eu quero!

segunda-feira, 22 de outubro de 2007

Modalidades

Mesmo cheia de coisas para fazer, ela não conseguia tirar da cabeça o raciocínio revelado na noite anterior pelo seu mais novo amigo. Tão inusitado quanto obvio, se é que isso é possível, o pensamento do amigo lhe prendeu a atenção exatamente por reunir essas avessas características.

Para o amigo, os beijos, os carinhos e todo o resto, que por uma questão de respeito à moral e aos bons costumes não vou descrever aqui, podem e devem ser categorizados. Há aqueles que são mornos e chochos. Na outra ponta, os que nos arrebatam inesperadamente e de maneira incontrolável numa noite de domingo que tinha tudo para ser apenas mais uma chata noite de domingo.

“Mas não será errado categorizar as situações que vivemos, já que cada uma tem um valor único e especial?”, se perguntava a menina. Depois de gastar horas com esse infrutífero dilema, decidiu categorizar algumas situações porque passara nos últimos anos.

Lembrou do seu primeiro beijo. “Foi melhor ou pior que o último?”, questionou. Puxa vida! De todas as situações que poderia ter escolhido lembrou justo desta? Justo de dois momentos tão diferentes e ao mesmo tempo tão similares em suas essências?

Mas foi em frente. Escreveu num papel tudo o que lembrava das duas situações. O primeiro beijo, adjetivou-o como mágico, instintivo, inexplicável, estranho. Para o último restaram adjetivos menos puros e abstratos, mas nem por isso menores.

Ao se dar conta de que não existem adjetivos menores, viu também que não existem modalidades ou categorias menores, apenas diferentes. Se sentiu estranha, meio desarmada. Ela, que nem queria criar modalidades para nada, se viu desprovida de uma idéia a que já estava apegada.

Respirou fundo e, num impaciente rompante, decidiu criar um final para mais essa viagem mental. Decidiu, muito decidida, que ao invés de criar modalidades para aquilo que já viveu, iria viver todas as modalidades. Escolheu o caminho mais simples, o caminho mais divertido.

sábado, 20 de outubro de 2007

Eu, uma menina veneno?

Nada melhor do que uma sonequinha depois do almoço. Alguns chamam de cesta, mas eu e minha mãe chamamos de sonequinha depois do almoço. Bom, lá estava eu deitada no sofá da sala, com o rosto já marcado pelas dobras do sofá, com um ouvido no mundo dos sonhos e o outro no mundo dos acordados.

Eu estava indo de encontro àquele milésimo de segundo em que a gente escolhe se vai entrar no sono profundo e aproveitar a rara oportunidade de colocar o sono em dia ou se vai continuar acordada, pensando em tudo e em nada ao mesmo tempo.

Como o ser humano hiperativo que sou, escolhi a segunda opção. Não sei porque, mas me parece impossível dormir de tarde. E olha que já tentei várias vezes. Mas continuando o raciocínio: naquele milésimo de segundo em que escolhi ficar acordada ouvi um som vindo da cozinha. Era o rádio da Ângela, moça que trabalha aqui em casa. Sintonizado em uma AM qualquer, as ondas sonoras do aparelho propagavam a música “Menina Veneno”, do Ritchie.

Ah, vai dizer que você não sabe que música é essa? Claro que sabe! Mas só para refrescar a memória, vou cantar um pedacinho: “menina veneno, o mundo é pequeno demais pra nós dois”. Lembrou? Que bom, melhor assim!

Ao ouvir essa belíssima letra não pude evitar e fui carregada para mais uma das minhas longas viagens mentais. Me peguei pensando: que tipo de veneno eu gostaria de ser? Do além, lembrei da letra do Raul Seixas e do seu desejo de ser uma metamorfose ambulante.

Pronto, respondida a questão: quero ser um veneno mutante. Um veneno que se adapte ao gosto do freguês. Se o envenenadado em questão for um homem inconsolado, quero ser um veneno doce, inebriante. Se for uma velha senhora desamparada, um veneno que lembre o gosto de sua infância. Se for um jovem conquistador, o veneno mais apimentado de todos.

Depois de definir que seria um veneno mutante, parei para pensar se deveria mesmo ser um veneno. Não seria melhor ser alguma outra coisa, algo menos nocivo? Essa pergunta me tirou qualquer chance de continuar minha sonequinha. E olha, até agora nada de resposta.

quinta-feira, 18 de outubro de 2007


Para inaugurar esse blog, nada melhor do que uma descrição de quem aqui escreverá tantas palavras. Como ainda não consigo falar sobre mim com a facilidade com que tagarelo sobre qualquer outro assunto, empresto a descrição de outro autor. Sei que não foi escrita para mim, mas ao ler não consigo evitar a pergunta: "será?".


Ser Brotinho


Paulo Mendes Campos


Ser brotinho não é viver em um píncaro azulado: é muito mais! Ser brotinho é sorrir bastante dos homens e rir interminavelmente das mulheres, rir como se o ridículo, visível ou invisível, provocasse uma tosse de riso irresistível.


Ser brotinho é não usar pintura alguma, às vezes, e ficar de cara lambida, os cabelos desarrumados como se ventasse forte, o corpo todo apagado dentro de um vestido tão de propósito sem graça, mas lançando fogo pelos olhos. Ser brotinho é lançar fogo pelos olhos.


É viver a tarde inteira, em uma atitude esquemática, a contemplar o teto, só para poder contar depois que ficou a tarde inteira olhando para cima, sem pensar em nada. É passar um dia todo descalça no apartamento da amiga comendo comida de lata e cortar o dedo. Ser brotinho é ainda possuir vitrola própria e perambular pelas ruas do bairro com um ar sonso-vagaroso, abraçada a uma porção de elepês coloridos. É dizer a palavra feia precisamente no instante em que essa palavra se faz imprescindível e tão inteligente e natural. É também falar legal e bárbaro com um timbre tão por cima das vãs agitações humanas, uma inflexão tão certa de que tudo neste mundo passa depressa e não tem a menor importância.


Ser brotinho é poder usar óculos como se fosse enfeite, como um adjetivo para o rosto e para o espírito. É esvaziar o sentido das coisas que transbordam de sentido, mas é também dar sentido de repente ao vácuo absoluto. É aguardar com paciência e frieza o momento exato de vingar-se da má amiga. É ter a bolsa cheia de pedacinhos de papel, recados que os anacolutos tornam misteriosos, anotações criptográficas sobre o tributo da natureza feminina, uma cédula de dois cruzeiros com uma sentença hermética escrita a batom, toda uma biografia esparsa que pode ser atirada de súbito ao vento que passa. Ser brotinho é a inclinação do momento.


É telefonar muito, estendida no chão. É querer ser rapaz de vez em quando só para vaguear sozinha de madrugada pelas ruas da cidade. Achar muito bonito um homem muito feio; achar tão simpática uma senhora tão antipática. É fumar quase um maço de cigarros na sacada do apartamento, pensando coisas brancas, pretas, vermelhas, amarelas.


Ser brotinho é comparar o amigo do pai a um pincel de barba, e a gente vai ver está certo: o amigo do pai parece um pincel de barba. É sentir uma vontade doida de tomar banho de mar de noite e sem roupa, completamente. É ficar eufórica à vista de uma cascata. Falar inglês sem saber verbos irregulares. É ter comprado na feira um vestidinho gozado e bacanérrimo.


É ainda ser brotinho chegar em casa ensopada de chuva, úmida camélia, e dizer para a mãe que veio andando devagar para molhar-se mais. É ter saído um dia com uma rosa vermelha na mão, e todo mundo pensou com piedade que ela era uma louca varrida. É ir sempre ao cinema mas com um jeito de quem não espera mais nada desta vida. É ter uma vez bebido dois gins, quatro uísques, cinco taças de champanha e uma de cinzano sem sentir nada, mas ter outra vez bebido só um cálice de vinho do Porto e ter dado um vexame modelo grande. É o dom de falar sobre futebol e política como se o presente fosse passado, e vice-versa.


Ser brotinho é atravessar de ponta a ponta o salão da festa com uma indiferença mortal pelas mulheres presentes e ausentes. Ter estudado ballet e desistido, apesar de tantos telefonemas de Madame Saint-Quentin. Ter trazido para casa um gatinho magro que miava de fome e ter aberto uma lata de salmão para o coitado. Mas o bichinho comeu o salmão e morreu. É ficar pasmada no escuro da varanda sem contar para ninguém a miserável traição. Amanhecer chorando, anoitecer dançando. É manter o ritmo na melodia dissonante. Usar o mais caro perfume de blusa grossa e blue-jeans. Ter horror de gente morta, ladrão dentro de casa, fantasmas e baratas. Ter compaixão de um só mendigo entre todos os outros mendigos da Terra. Permanecer apaixonada a eternidade de um mês por um violinista estrangeiro de quinta ordem. Eventualmente, ser brotinho é como se não fosse, sentindo-se quase a cair do galho, de tão amadurecida em todo o seu ser. É fazer marcação cerrada sobre a presunção incomensurável dos homens. Tomar uma pose, ora de soneto moderno, ora de minueto, sem que se dissipe a unidade essencial. É policiar parentes, amigos, mestres e mestras com um ar songamonga de quem nada vê, nada ouve, nada fala.Ser brotinho é adorar. Adorar o impossível. Ser brotinho é detestar. Detestar o possível. É acordar ao meio-dia com uma cara horrível, comer somente e lentamente uma fruta meio verde, e ficar de pijama telefonando até a hora do jantar, e não jantar, e ir devorar um sanduíche americano na esquina, tão estranha é a vida sobre a Terra.